Ler “Caminho” na clandestinidade

Alexander Zorin, escritor e poeta. Moscou, Rússia

Alexander Ivanovich Zorin nasceu em 1941 em Moscou. Foi, desde muito novo, escritor e poeta. Estudou Literatura. Durante a era soviética ganhou a vida a trabalhar em empregos relacionados com a geologia, a pescar “kjoljós”, e a traduzir poesia para o russo. A partir de 1980, começou a publicar obras suas. Nesse mesmo ano teve conhecimento da existência de Josemaria Escrivá através de um sacerdote ortodoxo chamado Alexander Men, que mais tarde seria assassinado, e de quem era profundamente amigo. Ouviu falar de Josemaria Escrivá e conseguiu pouco depois um exemplar clandestino de “Caminho” em russo que veio a ser uma inspiração para a sua vida e para o seu trabalho.

Zorin é cofundador dum projeto social, de beneficência e de apostolado chamado Devo Dobra (Árvore do Bem) organizado intelectuais para os prisioneiros de toda a Rússia.

Nasci, em Moscou, no início da Segunda guerra mundial. O meu pai era artista; a minha mãe professora de música e de geografia. Comecei a escrever poesia ainda estudante, mais ao menos quando comecei a ler. As primeiras coisas que li foram os letreiros das ruas e os jornais que estendiam sobre a mesa do jardim de infância, como se fosse uma toalha. Quando tive acesso à leitura dos clássicos russos, a que me apliquei com grande empenho; comecei a pensar no significado da vida, na vocação profissional, no homem e na natureza, tinha eu quinze anos. A primeira vez que abri o Novo Testamento tinha 27 anos, oito anos antes do meu batismo. Comecei a apreciar a beleza e a majestade do universo e isso despertou em mim um grande entusiasmo pela astronomia. Escrevi um livro sobre Tsiolovskii, cujos trabalhos acerca da filosofia da natureza incutiram em mim a convicção firme de que o universo é um organismo vivo. Formei-me no Instituto Literário e, em 1979, fiz-me membro da União dos Escritores, embora raras vezes publicasse na imprensa diária. Os meus primeiros livros surgiram em 1980; contudo, a maior parte deles só foram conhecidos depois da Perestroika. Durante a era soviética, ganhava dinheiro principalmente com trabalho manual em expedições geológicas, como pescador para uma herdade coletiva, com outros empregos esporádicos e a traduzir poesia.

Familiarizei-me com o trabalho do Padre Alexander Men, um sacerdote ortodoxo extraordinário, mártir, nos princípios dos anos setenta. Batizou-me pouco tempo depois. Sob a sua influência reconheci-me como poeta e como fiel da sua paróquia. Se bem que fôssemos muitos, compartilhávamos uma solidariedade espiritual, sentindo-nos membros de uma só família.

É sabido como os soviéticos trataram a Igreja. Tentaram exterminar a mais mínima manifestação de sentimento religioso desde as suas raízes. Apesar de estar sob vigilância, o Padre Alexander pregou a Palavra do Senhor do púlpito da sua igreja durante trinta anos e nos corredores em reuniões informais durante os três últimos anos da sua vida. A sua invocação de Deus era tão persuasiva e apaixonada que os seus opositores, os inimigos de Cristo, acabaram por assassiná-lo.

O Padre Alexander afirmou que a personalidade de Vladimir Soloviev, a quem dedicou a sua História das religiões pré-cristãs, em vários volumes, aparece uma vez em cada século. O mesmo se poderia dizer do Padre Alexander. Era uma personalidade universal. Historiador, teólogo, autor de livros espiritualidade, pregador convincente, pastor de milhares de intelectuais soviéticos errantes. O Padre Alexander deu testemunho de Deus através de outro dom notável: o dom do amor. Todos sabem que o amor não morre. Os filhos espirituais do Padre Alexander dirigiram-lhe as suas orações depois da sua morte, e ele, do Céu, respondeu a estas petições. Com seis milhões de livros impressos só na Rússia, o Padre Alexander continua a conduzir os seus compatriotas. Mantenho correspondência com muitos deles e estou consciente do efeito curativo das suas palavras na Rússia de hoje. São palavras de um sacerdote ortodoxo que está aberto ao mundo, à cultura e às outras igrejas.

Num encontro informal com paroquianos na sua casa durante a primavera de 1980, o Padre Alexander mencionou o nome de Josemaria Escrivá, desconhecido para os presentes. Frequentemente gravávamos em fita cassete estas reuniões, como felizmente fizemos com esta. Eis o que disse: “Nas últimas décadas, existiu no Ocidente um “movimento” chamado Opus Dei, Trabalho de Deus. O seu Fundador é o português Josemaria Escrivá. O movimento está estendido e encontra-se por toda a parte. Escrivá escreveu um pequeno livro com o título Caminho, coleção de pensamentos que espero que algum dia seja traduzido para que o possais ler. Escrivá diz que ser cristão não significa viver como um fariseu, um pequeno burguês, um pagão, e que, aos domingos, vai a um lugar a hora fixa para se elevar espiritualmente. Um cristão é cristão em todo o momento, cada dia, nas circunstâncias correntes, contatando com as coisas mais vulgares”.

Obviamente, a informação sobre o fundador da Obra era escassa e imprecisa: Josemaria, não é português; a Obra não é um movimento, mas parte integrante da estrutura hierárquica da Igreja Católica. Mas, nessa altura, a cortina de ferro ainda existia e tanto a literatura religiosa como determinada informação penetrava com muita dificuldade e grande risco. Contudo, o pequeno livro, Caminho, apareceu rapidamente na nossa paróquia. Era uma edição clandestina, escrita em papel de mortalha, com palavras difíceis de distinguir, cada exemplar era mais difícil de ler e, portanto, mais barata do que a anterior. As partes principais do livro estavam escritas em russo moderno, embora as numerosas citações da Sagrada Escritura foram traduzidas, por alguma razão, no antigo eslavo eclesiástico. Sinceramente, o contraste desanimou-me. O tom claro e incisivo, que o leitor moderno tanto apreciava, ficava comprometido; o seu ritmo, interrompido, por expressões arcaicas. Isto podia ser intencional, como um truque para dissuadir os espias da paróquia. O Padre Alexander, tinha sido acusado de simpatia pró-católica, inclusivamente de ser católico clandestino, e o “olho-que-vê-tudo” do KGB tinha descoberto certamente o pequeno livro. Os pontos em antigo eslavo teriam tranquilizado os guardas sobre a pureza ortodoxa, aliados depois ao aparelho de segurança estatal. Pelo menos, esta é a minha suposição. Tal astúcia tinha lugar no mundo ilegal da clandestinidade para confundir o inimigo mais facilmente.

O Padre Alexander, contudo, referiu-se abertamente ao Opus Dei e ao seu fundador em vários discursos públicos, quando foram permitidos.

Adquiri um dos exemplares quase ilegíveis de Caminho, li-o, e coloquei por trás de cada uma das páginas de papel de mortalha uma folha de papel branco. A partir deste exemplar, uns amigos meus cristãos, de Riga, reimprimiram-no.

O ensinamento de Escrivá - altamente significativo, em máximas espirituais e estilo sincopado - assemelhava-se à poesia didática. A abordagem é muito apropriada à nossa época. Não andamos hoje com um vazio espiritual, que nos impede de distinguir o bem do mal, o sublime do banal, o belo do feio? Na nossa falta de objetivos e no nosso desespero, parecemo-nos aos ninivitas, de quem se disse, há dois mil anos aproximadamente, que eles não podiam distinguir entre a sua mão direita e a mão esquerda (Jn, 4,11).

Passaram aproximadamente vinte anos desde que os escritos de Escrivá se converteram nos meus textos fundamentais, como as palavras da Sagrada Escritura, ou como as orações aprendidas. De vez em quando, espontaneamente procurava convertê-las em verso. Estas tentativas de adaptação de prosa em verso não são raras na literatura, sobretudo na literatura espiritual. O saltério é um exemplo da validade desta prática. Poetas excepcionais, como Lomonosov e Bunin, também transformaram salmos em versos para o leitor russo.

Para mim, Caminho é mais do que literatura. É um guia para a ação, para a incorporação da mensagem do Evangelho à vida. A sua importância é eterna. E, contudo, os preceitos morais estritos encontram-se raramente na espiritualidade ortodoxa. Poderia isto reforçar a chamada de atenção que as lânguidas almas eslavas necessitam para não murchar? Para nós, o pensamento expressivo deve ser suavizado com a rima, (“adornado com a rima alada” – Pushkin), e adornado suavemente, até ao ponto de se converter num excesso contido como o que se encontra na liturgia e na arte sacra ortodoxa. Ocorreu-me a ideia de que o sentido estético eslavo poderia abrandar os fortes ditames ocidentais. Só então os poderíamos aceitar.

Desde a época de Trediakovskii até aos nossos dias, a poesia russa adquiriu uma unidade silábica e tonal enriquecida pelo ritmo e pela rima. Embora a língua russa seja jovem e faça muito uso da descrição viva, a dimensão fonética da poesia não é menos significativa do que o conteúdo. A primeira revela, ou, pelo menos, complementa este último. E neste livro, que conteúdo – tão rico, tão íntimo, tão familiar! Adotei este livro, é o meu ponto de partida! Estou cativado pelo seu estilo estenográfico - uma estenografia do espírito - e sinto-me impelido a absorver esta qualidade nas minhas adaptações em verso. Estou certo de que Escrivá não se sentiria ofendido. Deixemos aos filólogos a tarefa de analisar o que procede da pena de Escrivá e da minha. E, a propósito, o compositor russo Yuri Pasternak, escreveu música para uns quantos aforismos que eu transpus para verso.

O artista duvida da utilidade do seu trabalho mais do que ninguém. Ninguém se sente mais só e desprezado. Pushkin compara o poeta ao eco que grita à vida, sem receber resposta. Tal isolamento é real, e neste estado solitário, o poeta só se pode salvar das profundidades do seu buraco negro, pondo-se na presença de Deus. E é verdade que Cristo esteve absolutamente só em alguns momentos da sua vida terrena: O Filho de Deus experimentou a amarga realidade humana da solidão. O poeta cristão sabe-o, e vêm-lhe à memória as palavras do Salvador: O artista é propenso à dúvida. Mas se é cristão a presença de Deus, como diz Escrivá, sente-se mais facilmente no processo criativo, que pode trazer a felicidade, inclusivamente o êxtase. É o momento mais feliz da oração! Como escreveu Nonna Slepakova. Aquele que reza vence a solidão.

A publicação de livros de poesia no nosso país diminuiu com a aparição da imprensa livre. Mas seria ingênuo pensar que isto reflete uma diminuição do interesse pela arte. Deus não abandona nunca o cristão que vive e trabalha para Ele. De uma forma ou de outra, Deus reclama o seu trabalho e anima-o em todas as circunstâncias, independentemente do tempo e das condições políticas do país.

O reconhecimento público ajuda sem dúvida o artista a desenvolver o seu talento. Mas quem aplaude? O talento, que adquire rapidamente fama e glória, é frequentemente esbanjado. Se o talento vem de Deus, já foi reconhecido pela autoridade máxima. Outro assunto completamente diferente é se o artista crê em Deus, e que tipo de relação tem com Ele. Se a relação é íntima, nenhum grau de isolamento social constituirá um fracasso. O artista entende que o seu talento deve desenvolver-se e crescer, e ele prescinde de muitas coisas na sua vida para alcançar esse fim, diz Escrivá.

O poeta não escreve no vazio. Criar é diálogo. Como na oração, sempre há um interlocutor. A poesia lírica dirige-se a gente real que às vezes responde e às vezes não. Beatriz, por exemplo, não respondeu a Dante. Através dos seus leitores, o poeta dirige-se a Deus, que sempre responde e é mais justo do que os juízes da terra. Ele dá indicações – umas claras, outras veladas. O poeta avalia o seu trabalho à luz dessas indicações, diz Pushkin. Só em harmonia com Deus o poeta não se enganará na avaliação do seu trabalho.

No meu ambiente profissional, contudo, a miúdo carecemos de uma perspectiva adequada sobre o nosso trabalho e tendemos a julgá-lo com demasiada indulgência ou demasiada severidade. A enorme quantidade de pequenas normas impede com frequência a auto-compreensão e que o artista dê expressão aos valores eternos. Esta tendência é frequentemente favorecida por características pessoais ou por causas objetivas, como a própria intuição da consciência nacional, arraigada na história e na cultura.

Anna Akmatova fazia-se eco de Nikolai Leskov, escritor russo que julgava que o Evangelho ainda não tinha sido pregado na Rússia. Se isto se podia dizer no século XIX, quanto mais no século XX quando o país definhava sob um regime interminável e poderosamente ateu?

O encontro com Cristo faz com que as pessoas se encontrem consigo próprias despertando nelas uma consciência de vocação apostólica e a “loucura” da santidade. E, se uma pessoa é poeta, dá valor à responsabilidade que o leva às vezes a deixar-se arrastar pelo zelo profético.

A criatividade é inata no homem. Os animais não a possuem. O homem tem capacidade para desenvolver a sua criatividade inata até à perfeição; como Cristo o deu a entender.

As pessoas criativas tendem a adotar uma atitude religiosa no seu trabalho. Um grande profissionalismo, fortalecido por ideais morais, é sinal de qualidade, uma manifestação de filiação divina. O poeta não costuma manifestar as suas opiniões religiosas claramente, mas permite que surjam do seu trabalho, diz Escrivá (“Amigos de Deus”, 61); do mesmo modo, de que serve se um colega leva uma cruz ao pescoço, mas não domina a sua técnica e é incapaz de exprimir a sua fé com a linguagem do seu trabalho profissional? Isto é uma afirmação clara. Entendê-la é difícil, mas necessário. Não me interpretem mal quando digo que um terço dos intelectuais de Moscou que frequentaram a igreja, onde o Padre Alexander trabalhou, se considerou um escritor, ou, mais presunçosamente, um poeta. O seu gabinete estava sempre cheio com os manuscritos deles. Ele percebeu claramente o valor duvidoso da maior parte, mas não fez nenhuma tentativa de o avaliar. Sabia que Deus coloca os seus filhos onde Ele quer que estejam. Uns cantando num coro, outros ocupados com os doentes, outros educando crianças e outros continuando a escrever. Em qualquer caso nada se pode alcançar sem criatividade. Cada pessoa recebe o seu talento. Mas as pessoas têm talentos diferentes e possuem-nos em graus diferentes. O Padre Alexander gostava de dizer que estas diferenças são essenciais para a nossa complementaridade mútua. Se todos tivéssemos os mesmos talentos, não necessitaríamos uns dos outros. Este pensamento refutou rotundamente a teoria marxista da consciência de classes.

Uma vocação profissional só se pode conseguir com a ajuda de Deus. Pede-a a Deus. Pede-lhe que ta revele e que Ele se revele a Si próprio nela.

O poeta pode adquirir um domínio perfeito da forma apenas para levar a cabo uma mera versificação. Um tem dentro de si uma nova percepção do mundo; outro, por contraste, simplesmente refunde o já feito e verdadeiro. Cada um deles pode ser um bom cristão e não ter a pretensão de fama mundial como autor. Sendo assim, como proceder? Frequentemente debato-me com o mesmo fenômeno. Esforço-me por conhecer as pessoas e os seus limites, o melhor possível, para saber a verdade sobre elas próprias - as suas pretensões íntimas, o seu inflamado amor-próprio, que arde sem chama. E junto com eles, recordo as palavras de São Josemaria Escrivá: “Não tenhas medo à verdade, ainda que a verdade te acarrete a morte” (Caminho, 34), a morte de virtudes imaginadas e de um mal intencionado sentido de presunção.

È possível, sem dúvida, amar a profissão, como os obsessivos da profissão, tão frequentes na nossa sociedade. Do mesmo modo, há gente que gosta da cultura por si mesma, encontrando nela um grande prazer estético Marina Tsvetaeva chamou a este tipo de gente “inteligentes sensuais” (“mozgovye chuvstvenniki”). Embora a importância da cultura seja óbvia, diz Escrivá, para nós não é um fim em si mesmo, mas um meio. Há muito que dizer sobre este conceito, embora uma formulação tão estrita do assunto possa ferir algumas mentes, por ser demasiado pragmática, e causar estranheza, sobretudo naqueles que endeusam a arte e recordam as palavras de Pushkin. Esquecem, contudo, que Pushkin disse isso no seu período romântico quando escreveu “Cigano”. No final da sua vida, entendeu a poesia e o seu lugar nela, de modo algo diferente: Sim, a criação é serviço, um sinal da imagem e da semelhança do Criador (Alexander Men). Contudo, é um serviço intrinsecamente expresso e condicionado pela liberdade. Uma liberdade que está oculta e não resulta óbvia; que não é um fim em si mesma, mas apenas um meio. Sim, o artista é um mestre artesão e um criador. O artista cristão é mestre e aprendiz ao mesmo tempo.

Albrecht Dürer, o grande artista alemão, pintou um quadro que representa Cristo a ser cravado na cruz. A interpretação é sumamente reveladora. O trabalho da crucifixão está a ser feito - quem o observa dá-se conta imediatamente - por profissionais. Trabalham com diligência e bem, dando conselhos uns aos outros e cuidando os pormenores. Obedecendo aos homens, põem o seu coração e a sua alma no trabalho, terminando-o com determinação, como uma obra de arte, como se as pessoas fossem admirar, depois, a obra das suas mãos. Eles estão tão metidos no trabalho que perderam a noção do que fazem. São profissionais irrepreensíveis (Esenin), mas sem qualquer sentido da presença de Deus. De que beneficia um homem em ser mestre artesão se a sua tarefa é a de atravessar com cravos os pés de Cristo? E que dizer do colega que volta as costas ao Senhor crucificado? Ambos são profissionais de primeira classe. Um profissionalismo que vira as costas a Deus não sabe literalmente o que está a fazer.

O Padre Alexander, referindo-se ao Santo Escrivá, falava insistentemente da consonância que deve haver entre o ser e o atuar, àqueles jovens que frequentavam a sua casa. Separar o ser e o atuar pode conduzir à esquizofrenia. A rotina diária é santa. O meu trabalho – interminável, esgotante, cuidadoso, e querido por mim – é santificado pela minha vocação. Na verdade, enquanto estou sentado à secretária, sinto o apoio do Altíssimo como em nenhum outro lugar e começo a perceber qual a razão Deus procurou os seus apóstolos nos seus lugares de trabalho. Eles amavam o que faziam, e através do que faziam, Ele chamou-os. O poeta gosta da sua arte, “a sua arte antiga”, como Blok a designou. Não pela fama e pelo luxo, mas por amor a uma verdade mais elevada, uma verdade revelada na natureza mais essencial do seu trabalho e da sua atuação. O poeta é um mestre de artesãos, um manancial, um criador do universo. É companheiro de Deus… ou um seu rival. Converte-se em rival quando tenta substituir a verdade suprema, pela sua própria verdade. Forças demoníacas o dominam, o submergem nele próprio, converte-se num “feiticeiro”, que presta culto a si mesmo, fazendo ouvidos surdos a Deus, e incapaz de segui-lo.

Cristo, com efeito, não levou os apóstolos para longe da realidade da vida com visões de coisas irrealizáveis, mas conduziu-os, uma vez e outra, ao seu trabalho. O trabalho manual era a sua escola primária. Cristo também exerceu um ofício. Poder-se-ia dizer que eles aprenderam da vida “tocando-a”. Entendo o que quer dizer captar o mundo através da visão de um carpinteiro, e este pensamento comove-me. Ocultos no sentido do tacto estão os instintos cognoscitivos mais profundos - guardas que leem uma seta indicadora das fronteiras do conhecimento. Cristo, contudo, aceitou Tomé, que não acreditou. O reino do espírito e o reino da matéria estão misteriosamente unidos. Se procuramos provas, é porque nos falta fé.

Tenho a minha prova e ela está unida ao ato criativo. Quando estou imerso no ato criativo, a procurar a palavra certa, não só ponho a memória e a associação à prova, mas também as minhas mãos. Apesar da intermitência, elas modelam a argila do inexprimível, do imperceptível, o que resiste à forma. Recordo este mesmo processo quando ouço o Padre Giorgi. Chistyakov, brilhante, poderia eu acrescentar, na nossa igreja. Os seus dedos, tão sensíveis como os de um músico, participam no ato plástico da criação. As palavras são tanto materiais como espirituais na natureza: as pessoas são compostas de corpo e alma. Por esta razão, a definição de materialismo cristão, como a formulou São Josemaria Escrivá, e tão essencial ao espírito da Obra, confirmou as minhas intuições sobre poesia, e justificou o valor intrínseco do ambiente em que me movo. O Santo Escrivá protege-me do espiritualismo agressivo que tão frequentemente encontramos nos meios eclesiásticos (Entrevistas a Mons. Escrivá, 115, e também ibidem, 114). A Deus agrada-lhe o mundo visível e disse-o claramente (Gen. 1). Os cristãos acreditam no Verbo Encarnado e na ressurreição do corpo.

Gosto da poesia que traz à superfície a realidade sensorial, o cheiro, a cor e o som. Esta estética reconcilia os mundos visíveis e invisíveis. O funcionamento do Espírito é discernível, sobretudo na arte. Não em vão os autores da Bíblia o comparam à brisa suave do vento (3 Reis, 19, 11-12).

O poeta Arsenii Alexanderovich Tarkovskii exerceu, no seu tempo, uma influência poderosa no meu trabalho. Uma vez escrevi um artigo sobre a sua poesia: “A elaboração laboriosa do verso esvoaça como uma borboleta, como a escuridão sobre as asas da luz”. A poesia de Tarkovskii transporta-nos dos extremos da percepção sensorial, do peso terreno, à imponderabilidade etérea. A matéria penetrada por uma energia desconhecida, desliza como se não possuísse nem peso nem massa específica.

Do mesmo modo, o homem, na vida quotidiana, pode sentir às vezes que tem asas nas costas. Como as figuras num quadro de Chagall, cujos apaixonados esvoaçam por cima da terra, mas ainda pertencem a ela. Impregnar de espírito sobrenatural o normal e corrente, como São Josemaria Escrivá diria. E, como o Padre Alexander acrescentaria, por outras palavras, não nos consideremos os milagres da criação que somos; ainda que raramente o notemos.