O verdadeiro São Josemaria Escrivá e a versão do filme

Um membro do Opus Dei que trabalhou com o seu fundador fala sobre a autencidade do retrato de S. Josemaria tal como aparece no filme 'Encontrarás dragões'

J. Coverdale, um numerário do Opus Dei, professor de Direito na Universidade de Seton Hall, trabalhou na sede do Opus Dei em Roma de 1960 a 1968.

Foi professor de História em Princeton e em Northwestern e é autor de Uncommon Faith: The Early Years of Opus Dei e de várias obras sobre a história de Espanha. Encontrarás Dragões desenrola-se no contexto da Guerra Civil de Espanha.

Logo, J. Coverdale está em boa posição para falar acerca da autenticidade do retrato do fundador do Opus Dei feito no filme. Embora se trate de uma história que mistura a ficção com a realidade, muitos dos detalhes do filme, incluindo os traços básicos dos primeiros anos de São Josemaria, são realmente verídicos.

Esteve de algum modo envolvido na produção de Encontrarás Dragões?

Não, exceto já no fim, quando estavam a fazer os últimos acertos, alguém me telefonou e pediu esclarecimentos de caráter histórico sobre a Guerra Civil de Espanha, etc. Portanto, houve apenas um telefonema e não sei se alguma coisa do que eu disse teve influência na versão final ou não.

Bom, e o que é que pensa do filme?

Achei-o muito interessante. Penso que é bastante correto acerca de São Josemaria. É claro que tiveram de alterar algumas coisas de modo a poder entrar na história do filme, mas penso que praticamente tudo o que dizem dele, ou lhe acontece no filme, tem uma correspondência bastante clara com a sua própria vida, com a história do que realmente aconteceu. É talvez inesperadamente exato para um filme inspirado em acontecimentos reais, mas que não é um documentário.

Houve um Manolo Torres na vida de São Josemaria?

Que eu saiba, não.

Nada que se aproxime?

Não, que eu tenha conhecimento. No filme, conta-se que teve uma briga com Manolo no seminário. Ora ele teve realmente uma briga com um colega no seminário, mas não era alguém que fosse amigo de infância. Era na realidade bastante mais velho do que ele. É o que estou a dizer: sim, tem uma base histórica; sim, ele entrou numa briga com alguém no seminário. Mas não, não foi com Manolo, e não foi com nenhum amigo de infância.

Trabalhou com São Josemaria em Roma.

Sim, estive em Roma durante oito anos. Durante sete desses oito anos trabalhei na sede central do Opus Dei.

Qual era a sua atividade?

Trabalhava numa espécie de departamento de relações públicas do Opus Dei. Preparávamos principalmente material escrito explicando o Opus Dei, o seu espírito, etc. Na verdade não tínhamos muito – ou quase nenhum – contacto com jornalistas ou algo semelhante. Tratava-se mais de preparar material informativo.

Então deve ter conhecido o fundador bastante bem.

E conheci, foi maravilhoso. Diria que não o víamos todos os dias, mas quase todos os dias, por vezes muito rapidamente, outras vezes durante bastante tempo. É verdade, foi uma oportunidade fantástica de conhecê-lo – certamente uma das grandes bênçãos da minha vida.

Nessa altura, alguma vez o ouviu falar sobre algum dos acontecimentos abordados em Encontrarás Dragões?

Por vezes falava acerca da fundação do Opus Dei, que aparece aí de uma forma bastante misturada com a ficção. Mas São Josemaria era extremamente discreto quanto a este tema. Raras vezes disse algo mais do que “No dia 2 de Outubro de 1928, vi o Opus Dei”. E isto por quê? Penso em duas razões. Uma era uma questão de humildade, tratou-se claramente de uma intervenção de Deus na sua vida, e ele não queria apresentar-se como tendo recebido essas graças especiais. E penso que ainda mais importante, o Opus Dei e todo o seu espírito assentam no fato de que as pessoas podem e devem santificar-se na sua vida corrente, fazendo coisas normais, sendo dona de casa ou pedreiro ou enfermeira ou professor de direito, como eu, ou o que quer que seja, e que a santidade não está em graças extraordinárias nem em fenômenos místicos extraordinários.

Em que medida é que o filme retrata bem a essência daquilo que São Josemaria iniciou: a sua visão sobre o Opus Dei?

Não me parece que faça um grande esforço nesse sentido. Apresenta uma versão com grande dose de ficção quanto à visão fundacional de São Josemaria, mas penso que seria muito difícil de compreender se não se soubesse já algo sobre o Opus Dei. Na verdade o Opus Dei não é de modo nenhum o protagonista do filme. O nome é referido umas vezes, e São Josemaria aparece com um grupo de jovens que foram os primeiros membros do Opus Dei, e é tudo. Não me parece que no filme se consiga descobrir muito sobre o Opus Dei como organização, nem me parece que o realizador estivesse a tentar retratá-la como organização ou a descrever de que se trata. Consegue-se descobrir alguma noção sobre alguns aspectos do espírito, por exemplo, a ideia de santificar as coisas correntes, do dia-a-dia. E apercebemo-nos certamente da sua mensagem de amor e perdão. Mas o que o Opus Dei realmente é como organização, ou uma apresentação sistemática da sua mensagem não é o que o realizador está a tentar fazer.

Há uma cena em que a mãe de Josemaria lhe pergunta: “Bom, o que é que vais chamar ao teu grupo?” E ele diz “Chamamos-lhe simplesmente ‘Trabalho de Deus’.” E ela diz “Soava melhor em latim” que é, naturalmente, opus Dei. Isto é exato?

Não. A princípio ele não tinha um nome, nem o queria ter. Dizia: “Não, não quero chamar a atenção para um grupo, quero simplesmente pessoas a tentarem santificar-se no meio do mundo e a tentarem divulgar a mensagem da santidade”. Mas rapidamente percebeu que tinha de ter um nome. E um dia, quando falava com o seu confessor, não com a mãe, o confessor perguntou-lhe: “Como é que vai o seu opus Dei?” E ele disse para si próprio – não sei se nessa mesma ocasião ou algum tempo depois – “É isso, este é o nome”.

Portanto neste ponto da sua vida o filme usou de alguma licença poética.

Bom, é necessária uma grande dose de licença poética nestas coisas. O que tentei dizer é: não se trata de uma descrição historicamente exata, mas de olhar para o acontecimento e dizer, Ok, não foi bem assim que aconteceu. Mas, pode ter acontecido que, mais tarde, quando a mãe lhe perguntou qual era o nome, ele tenha respondido: “Opus Dei.”

Mas a maior parte das coisas foram transformadas de um modo ou de outro para encaixar na narrativa que ele está a construir, que não é fundamentalmente sobre São Josemaria; é principalmente sobre esta personagem de ficção.

Que pensa de algumas críticas negativas sobre o filme?

Nas que eu li, não me apercebi de que se referissem muito ao Opus Dei. Focavam mais aspectos tais como a cinematografia ou o modo como os textos se relacionavam ou coisas deste gênero. E eu não sou de modo nenhum uma autoridade quanto a filmes; não vejo mais do que meia dúzia por ano.

Penso que têm razão quando dizem que não se trata de uma obra prima, como o foi a ‘Missão’. Mas acho que é um bom filme.

Há no filme alguns pontos de ordem teológica dos quais discorde? Acha que o filme pode ser enganador em alguma área dos ensinamentos católicos?

Não, particularmente para alguém que se descreve a si próprio como “agnóstico vacilante”, acho que foi de um rigor notável.

De um modo geral, é um filme que pode aproximar as pessoas de Deus?

Penso que sim, principalmente esta mensagem de perdão e a maneira de encarar de modo espiritual ou sobrenatural os desafios que, de uma forma ou de outra, todos enfrentamos. Acho que também é um retrato muito positivo de um sacerdote católico, o que, sabe Deus, é bastante necessário nestes tempos. Acontece que este padre foi o fundador do Opus Dei e acontece que é um santo, mas é acima de tudo um sacerdote que é apresentado sob luzes muito atraentes. Ouvi dizer que, pelo menos numa ou duas dioceses, o responsável pela pastoral vocacional disse: “Quero que muita gente veja este filme”.

Qual diria ser o sentimento geral sobre o filme entre os membros do Opus Dei? Estão satisfeitos?

Sim, acho que a maior parte está. Muitos pensam que apresenta um retrato bastante real e simpático do nosso fundador, o que, na verdade, sempre é bem acolhido. Estamos satisfeitos por haver mais gente a conhecê-lo e talvez a ter-lhe devoção. E, como disse, divulga uma mensagem muito boa acerca do perdão e de como ultrapassar as dificuldades com amor e não com ódio. E por fim, o fato de prestar um serviço à Igreja, ao apresentar um sacerdote sob luzes muito favoráveis e atrativas é algo que nos agrada muito.

Tem a percepção de que o filme vai gerar muito interesse quanto ao Opus Dei?

Bem, esperamos que sim. Só o tempo o dirá. Só o vi uma vez. Não acho que, para bem ou para mal, se depare realmente com o Opus Dei como um grupo. Vê-se um grupo de jovens à volta de São Josemaria, e vemo-los em várias atividades de diverso tipo. Mas não me parece que alguém ao ver o filme diga: Ah, esse grupo parece mesmo interessante, gostava de entrar em contacto com eles. Poderão dizer: Ah, aquele sacerdote parece muito simpático. Gostava de saber mais acerca dele e da sua vida. E se o fizerem irão sem dúvida aproximar-se imediatamente do Opus Dei. Mas não é realmente, de modo nenhum, um filme sobre o Opus Dei.

Mas julgo que vai propor a uma série de pessoas que têm preconceitos quanto ao Catolicismo uma espiritualidade da qual talvez não tenham ouvido falar – encontrar a santidade através da vida do dia-a-dia e do trabalho de cada um.

Suponho que isso é verdade, e certamente esperamos e estamos a rezar para que realmente aconteça.

E podem ser surpreendidos pelo fato de descobrir que os católicos podem encarar a vida deste modo e procurar a santidade deste modo.

Certamente. A estreia do filme realizou-se em Espanha há três ou quatro semanas e parece ter havido aí uma quantidade de histórias de pessoas que regressaram à Igreja ou que disseram: ‘Bom, talvez eu deva reconsiderar onde estou’, ou pessoas que se reconciliaram com parentes com quem estavam, digamos, em conflito.

Que acha do modo como a Guerra Civil de Espanha é apresentada no filme?

Acho que está bem. É bastante neutral. Não me parece que alguém esperasse um quadro sofisticado sobre o que era a Guerra. Há uma série de cenas de batalha etc., mas quanto à motivação da guerra – fica-se com a ideia de que havia um forte elemento anticlerical na guerra e ataques à Igreja. Não se entende por que, mas vê-se acontecer.

E percebe-se que há um lado que é apoiado pelos fascistas e outro lado onde há uma série de comunistas. Penso que, falando tecnicamente, o lado de Franco não era fascista, embora fosse apoiado por forças fascistas; e no lado republicano havia realmente comunistas, mas também havia socialistas e anarquistas e pessoas que não eram nada disto, mas sim republicanos.

Enfim, é uma realidade complicada, e o filme não entra nesses detalhes. Provavelmente não podia fazê-lo. Mas acho que o que vemos é bastante exato.

John Burger, editor de National Catholic Register